sexta-feira, 30 de junho de 2017

Macroscópio – Para variar um pouco do grande incêndio. E também para não variar.

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Poucos dias antes de morrerem 64 pessoas no fogo de Pedrógão Grande, pelo menos 80 perdiam a vida num fogo que consumiu uma torre de habitação social em Londres. Já alguma coisa se escreveu sobre a diferença entre o pedido de desculpas da primeira-ministra britânica no Parlamento de Westminter por contraste com a ausência de qualquer acto de contrição do nosso primeiro-ministro, mas não sei se algum jornal português se atreveria a escrever, como escreveu hoje o Financial Times, que “The disaster will impel action, as the Great Fire of London led to the Rebuilding of London Act of 1666, and the cholera outbreak of 1849 brought fresh water to North Kensington. Lurking behind it, though, are intractable conflicts about gaps between rich and poor, and housing scarcity.”
 
Encontrei esta passagem quase no final de uma grande reportagem e investigação daquele jornal de referência da City de Londres (e da elite europeia), Grenfell: the anatomy of a housing disaster, um trabalho onde se procura explicar o que aconteceu e porque aconteceu, recapitulando as diferentes políticas públicas de habitação do Reino Unido. É interessante lê-lo e não apenas pela sua conclusão, até porque relata histórias que não serão muito diferentes de algumas que conhecemos em Portugal, sobretudo no que diz respeito à relação das autoridades públicas com as empresas de construção. Para além disso é também uma forma de não continuarmos exclusivamente focados nas discussões sobre o que passou em Pedrógão Grande.
 
Também por isso decidi que este Macroscópio, mesmo reservando uma segunda metade para o tema da floresta portuguesa, a algumas sugestões de leitura que remetem para alguns temas recorrentes nesta newsletter, como o futuro da democracia ou a ameaça do terrorismo islâmico. Ei-las, apresentadas com a esperança que abram algumas janelas para pensar o mundo em que vivemos:
  • The Islamic Road to the Modern World, um texto de Malise Ruthven na New York Review of Books onde se apresenta e se analisam criticamente dois livros recentes: The Islamic Enlightenment: The Struggle Between Faith and Reason, 1798 to Modern Times, de Christopher de Bellaigue, e Freedom in the Arab World: Concepts and Ideologies in Arabic Thought in the Nineteenth Century, de Wael Abu-‘Uksa. Estas longas recensões são sempre muito interessantes, sendo que esta fecha com uma conclusão desafiadora: “Just as the struggle for Indian independence was sharpened by Western political concepts, the modern jihadist discourse reveals a raft of borrowings from radical Western thought. As the British philosopher John Gray has noted, “Islamic fundamentalism” is not a wholly indigenous growth, but rather “an exotic hybrid bred from the encounter of sections of the Islamic intelligentsia with radical western ideologies”—and, one might add, with the new opportunities for propaganda and recruitment made available by social media.”
  • Why Do Democracies Fail?, de David Frum na The Atlantic, tem igualmente como ponto de partida um livro, Conservative Parties and the Birth of Democracy, livro que resulta de uma investigação académica a qual “points to the importance of strong conservative parties—and warns about the consequences when they fall short”. O objecto do estudo foi a comparação entre as formas como o Reino Unido e a Alemanha realizaram as suas transições para a democracia – progressiva e pacífica a primeira, feita de avanços e recuos, alguns deles tenebrosos, a segunda – e algumas das suas conclusões têm bastante actualidade. Pequena passagem onde se destacam as diferenças no papel desempenhado pelos partidos conservadores nesses dois países: “Whereas the pragmatic politicians atop the British Conservative party could restrain ideologically motivated activists, the German Conservatives succumbed to them. The successful British Conservatives could look at Labour governments as unpleasant but ultimately temporary intervals. The Imperial German Conservatives experienced the loss of control of the state after 1918 as an unrecoverable catastrophe to which they could never be reconciled.”
  • The Forces Driving Democratic Recession, é uma análise de Jay Ogilvy para a Statffor, sendo que também ela tem como ponto de partida um livro, desta feita uma obra recente do jornalista e comentador do Financial Times, Edward Luce: The Retreat of Western LiberalismOgilvy cruza a leitura deste livro com outras referências, sendo interessante a forma como procura encontrar uma definição da “má governança” a que Larry Diamond – uma referência incontornável dos estudos sobre a democracia – atribuiu, num ensaio publicado o ano passado, a ascensão do populismo. Deixo-vos de novo um pequeno extracto: “Hillary Clinton may well have lost the election as a result of her use of a single word: deplorables. In England, they call them "the left-behinds," a phrase that figured centrally in a column not about England but about Islam and the post-Colonial legacy in Asia. When the gap between rich and poor yawns wide, when the middle class gets hollowed out, when economic insecurity strains the social contract, then populists call for a strongman to stand up to the corrupt elite, and democracy suffers. Luce quotes American sociologist Barrington Moore: "No bourgeoisie, no democracy."
 
 

Regressando ao nossos incêndios – e à nossa floresta
 
Como prometi a abrir não é possível ignorar o debate que prossegue sobre o fogo de Pedrógão Grande, sendo que hoje decidi selecionar um conjunto de textos que, mais do que discutir os falhanços da protecção civil ou os jogos políticos e parlamentares, se debruçam sobre o que deve ser a nossa floresta:
  • Eucaliptocratas, diz ele, é um texto de um dos especialistas que mais escutado tem escrito nos últimos dias, Henrique Pereira dos Santos, e que foi publicado no jornal online Eco. É um texto que procura rebater os argumentos de Francisco Louçã e que aborda sem complexos o tema dos eucaliptos. No final conclui, referindo-se ao antigo líder do Bloco de Esquerda: “Só um grande desconhecimento do problema justifica a defesa de soluções que restringem a capacidade de gestão dos territórios marginais (é isso que está na raiz do problema que temos com o fogo) em vez de soluções que aproveitam a capacidade de gestão instalada para optimizar socialmente as soluções possíveis. É que a alternativa ao desconhecimento seria admitir que Francisco Louçã está mais preocupado em evitar os lucros futuros das celuloses (“a Esquerda deve rejeitar qualquer caminho que conduza ao benefício dos eucaliptocratas”) do que em evitar vítimas futuras dos incêndios, uma hipótese moralmente aberrante que me recuso a acreditar que seja adoptada com plena consciência do que se está a dizer.” (Henrique Pereira dos Santos escreve regularmente no blogue Corta-Fitas, tendo aí publica mais dois textos dignos de nota: As ilhas não ardidas e A indústria e a gestão florestal.)
  • Incêndios, eucaliptos ou a ignorância e arrogância do Bloco (e do dr. Louçã) é um texto que eu mesmo escrevi no Observador sobre o mesmo tema, um texto que mais do que defender o eucalipto procura demonstrar que “A obsessão do Bloco com o eucalipto não é uma preocupação com a floresta, é só preconceito e ignorância. Mais: sem o contributo do eucalipto dificilmente teremos recursos para recuperar o mundo rural.” Eis uma das suas passagens, onde procurei ser didático: “Porque é que as pessoas plantam eucaliptos? Afinal nos três concelhos inicialmente afectados não há plantações das empresas de celulose (há uma quinta da Altri na região, mas é já no concelho de Góis). Há várias razões. Primeiro, o retorno do investimento no eucalipto é mais rápido: em oito a dez anos é possível cortar e vender as árvores. O rendimento é mais baixo do que o do pinheiro, mas quando estamos em áreas onde as florestas ardem de 12 em 12 ou de 15 em 15 anos (o tempo necessário para se acumular o material combustível que as transformam em barris de pólvora), o investimento também é mais seguro: é cada vez mais raro ver um pinhal crescer até aos 25 anos, idade boa para um corte.
  • Depressa e bem não há quem, da bióloga Maria Amélia Martins-Loução no Público, trata de demonstrar que “O actual pacote da reforma florestal tem muito pouca visão de futuro”. Também ela critica a muita ignorância existente no debate público e político: “Fala-se no abandono das terras e em responsabilizar quem as abandona, mas esquece-se que os proprietários que antigamente eram ricos porque tinham um pedaço de terreno agora preferiam não ser “ricos”. As despesas incomportáveis que têm para a limpeza, a cerca de 2000 euros por hectare, não são compensadas pela venda da lenha ou da madeira. Não há o incentivo à associação florestal nem as autarquias promovem ou apoiam essas associações através de fundos que recebem para o efeito.”
  • Regime florestal de catástrofe, de Viriato Soromenho Marques no Diário de Notícias, alinha mais com a reivindicação de uma forte intervenção do Estado, e mesmo estando alguns dos seus argumentos mais alinhados com os que mais temos ouvido a outros comentadores, não deixa de sublinhar pontos muito relevantes: “Os vigilantes da natureza e os guardas-florestais viram os seus efetivos reduzidos em 50% nos últimos 15 anos, deixando de ser um complemento eficaz da Rede Nacional de Postos de Vigia. Acresce ainda que as leis, regulamentos, planos, estratégias e estudos não são verdadeiramente implementados, avaliados, ou sequer lidos. Mesmo as normas mais simples, como a "gestão de combustível" junto às estradas ou às habitações, são abertamente desrespeitadas.
  • Carta aberta ao primeiro-ministro de Portugal, de Francisco Gomes da Silva, um académico que foi secretário de Estado das Florestas no governo de Passos Coelho, é porventura um dos textos mais sinceros que li, um dos poucos onde se faz um acto de contrição em relação às limitações da acção governativa: “Não tenho por hábito “sacudir a água do capote” e, como tal, não posso deixar de sentir um peso particular, enquanto ex-titular daquela pasta, pela tragédia que ocorreu recentemente no incêndio de Pedrógão Grande. Já publicamente me penitenciei por não ter tido a força, o engenho e a arte para fazer melhor quando tive essa oportunidade. Garanto-lhe que tentei com todas as minhas forças!” (Depois de ler esta crónica interroguei-me, de novo, sobre porque será tão difícil a qualquer membro do actual Governo dar um sinal de humildade semelhante...)
  • Como é que Deus permite isto?, a crónica de Henrique Raposo na Rádio Renascença, uma reflexão que, não sendo de um especialista em gestão florestal, nos interpela: “A pergunta “como é que Deus permite isto?” é uma pergunta errada. A questão é: como é que nós permitimos que o país chegasse a este ponto? Como é que nós, enquanto comunidade política, não fizemos nada nos últimos 50 anos para responder ao êxodo rural que começou quando o meu pai migrou para a Ribeira de Frielas no meio das cheias de 67? No sábado, como é que tantas autoridades e organismos falharam de forma tão clamorosa? E, já agora, porque é que cada um de nós não perde um fim-de-semana por ano a limpar os terrenos do avô lá da terra?
  • A Origem do Grande Incêndio Florestal de Pedrógão Grandeé um texto mais técnico de Emanuel de Oliveira publicado no blogue Fogos Florestais que tem como principal interesse a forma como explica o desenvolvimento de uma trovoada como a que terá desencadeado o fogo de Pedrógão Grande. Ficamos a saber, por exemplo, que há raios negativos e raios positivos, que estes últimos podem “viajar” dezenas de quilómetros e que é possível não serem acompanhados por trovões.
 
E por aqui me fico por hoje. Tenham bom descanso e boas leituras.
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